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A gangue da Rua Formosa

A Rua Formosa tinha lá seus encantos também. Era o melhor lugar da minha aldeia, principalmente nos dias de chuva.

Luiz Valério
Por: Luiz Valério Fonte: Luiz Valério
07/01/2023 às 13h09 Atualizada em 07/01/2023 às 22h14
A gangue da Rua Formosa
Juazeiro do Norte, minha aldeia, nos dias de hoje - Foto> Reprodução/INternet

Ultimamente tenho sido tomado de assalto por lembranças da minha meninice na Rua Formosa, a rua da minha aldeia, onde cresci. Juazeiro do Norte, no Ceará, cidade encravada no verde Vale do Cariri cearense - um oásis em meio ao sertão - é o lugar que chamo de minha aldeia. Foi lá que nasci com seis quilos e meio, num parto normal e solitário da minha mãe. Sem parteira sem nada. Apenas dor e amor, que é a sina das mães.

Foi na Rua Formosa que aprendi a ser. Foi lá que vivi minhas primeiras aventuras de menino. Cacei lagartixa, me aventurei por terrenos baldios com meu amigo Sérgio, como quem se perde numa floresta em lugar remoto. Íamos em busca de manga, caju, castanhola, tamarindo ou qualquer coisa que matasse nossa fome insaciável ou que motivasse nossas investidas pelas redondezas. 

Às vezes, nos aventurávamos mais perigosamente e íamos tomar banho na “levada”, um córrego de água cristalina que ficava há alguns quilômetros de distância de casa. Sentia-me o próprio Huckleberry Finn, de Mark Twain.

Um menino tímido, de corpo mirrado, mas cheio de questionamentos interiores sobre o mundo à minha volta e mais ainda de sonhos. Este era eu. E, assim, cresci na Rua Formosa, vendo histórias belas e trágicas. Amores nascendo e morrendo. Nunca me esqueço da linda imagem de Zélia, a vizinha corpulenta, tomando banho ao relento no quintal. Fui flagrado por ela espiando-a. Mas em vez de me repreender, ela sorriu. Ao me encontrar na calçada, veio minha surpresa: -”Gostou do que viu?” Zélia, Zélia, se gostei!

Desde cedo experimentei a adversidade de ser perseguido por ser quem era. Sim, eu era um guri estranho, que não gostava de fazer traquinagens como quebrar os telhados e as vidraças dos vizinhos só por maldade. Eu gostava de ler. Que absurdo! Mas Nanô, Tonho, Lula Zarolho, Ciço Neguim, o terrível, e Cigarro Forte (um menino que aos 11 ou 12 anos fumava tarugos e mais tarugos de cigarro “lasca peito”, como dizia minha avó) queriam uma vítima para chamar de sua. Fui o escolhido. Por algum motivo que nunca entendi, Cigarro Forte era o que mais me detestava. Tinha uma gana absurda de me quebrar na porrada.

Menino estranho que eu era, virei alvo do ódio gratuito de um grupo de meninos malvados, a quem eu batizei de “a gangue da Rua Formosa”. Eles não gostavam de mim. Queriam me espancar, me trucidar. Assim, gratuitamente. Como eu não era de briga, parte dos meus dias era dedicada a pensar estratégias de sobrevivência. Como voltar pra casa da escola sem chegar esfolado, de olho roxo? Afinal, a “gangue da Rua” Formosa estava à solta. Era preciso buscar atalhos, caminhos alternativos. 

Mas a Rua Formosa tinha lá seus encantos também. Era o melhor lugar da minha aldeia, principalmente nos dias de chuva. Não sei porquê, mas era isso que eu achava. Nesses dias, eu era tomado por uma sensação gostosa de conexão com o mundo e todas as suas beleza. O arco-íris cortando o céu. “Deus já tomou providência para que não caia uma tempestade”, minha mãe dizia, apontando para o arco multicolorido em meio às nuvens. 

Hoje, tudo isso me vem à mente. E reflito que o homem que sou é resultado da soma desse todo. Um sobrevivente. Desde sempre. Aprendi cedo que a violência gratuita não leva a nada. Por isso, na falta de muitos coleguinhas da minha idade, estava sempre acompanhado de amigos velhos e velhos amigos, como seu Ercílio, o caçador de preás, seu João, o carroceiro, Major, o sapateiro, seu Joca, o agricultor... Preferia ouvir estórias, causos e histórias de gente grande. 

Assim, fui criando meu repertório sobre o mundo. Vendo nascer em mim o desejo de contar histórias também. Hoje, entendo que nascemos para ser o que devemos ser. E a vida nos leva para o caminho que temos que seguir, colaboremos ou não.

Num dos meus retornos a Juazeiro do Norte, há alguns anos, fui visitar os conhecidos da minha infância na Rua Formosa. Estava tudo mudado. Muita gente não estava mais ali. Alguns, como meu velho amigo caçador de preás, tinha feito a viagem definitiva. Os vizinhos seu João, Dona Júlia, idem. Nanô, Tonho, Lula Zarolho, Ciço Neguim e Cigarro Forte - os terríveis da redondeza - tinham sido tragados pelas drogas, vício em álcool, violência urbana, criminalidade.

Enfim, meu amor aos livros me salvou. Hoje, escrevo esta crônica rememorando cada passagem da minha infância pobre, mas recheada de amor de mãe, cuidado de pai, companheirismo de irmãos e da amizade dos meus velhos amigos. Um sorriso me escorrega pelo canto da boca. Viver é complicado, exige coragem e disposição, sim, mas vale muito a pena.

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