Às vezes, tenho a impressão de que minha memória resolveu acordar de um sono profundo. Não, não me entenda mal. Nunca sofri de amnésia ou de nenhuma dessas doenças do esquecimento. É que nunca fui muito de revisitar o meu passado. Mas, ultimamente, é como se minha memória tivesse criado vontade própria e, como aquelas velhinhas que vivem retirando suas lembranças de baús antigos, tem revirado fatos da minha infância que eu dava como mortos e enterrados. Não que sejam acontecimentos ruins, mas aprendi a deixar o passado onde ele pertence: no passado. Porém, minha memória parece ter se rebelado contra essa minha determinação.
Curiosamente, essa revolta da memória contra meu desejo de enterrar o passado começou quando me impus a responsabilidade de escrever uma crônica por dia. Foi como abrir uma torneira de recordações; as lembranças, tal qual crianças sapecas, ficam pedindo para ser registradas. Não quero que você pense que estou me queixando. Não é isso. Apenas compartilho com você, caro leitor, cara leitora, o que tem me acontecido. Por muito tempo, não lembrava de muita coisa da minha primeira infância. Agora, detalhes mínimos voltam à tona, como pequenos tesouros escondidos na areia. Tem sido uma experiência fascinante.
Mais do que fascinante, tem sido vital para minha rotina de escritor. Afinal, somos como uma colcha de retalhos, costurada com as experiências que vivemos, ouvimos e até inventamos. Carregamos em nós os ecos de nossos pais, avós, amigos, e das histórias que lemos e ouvimos. O escritor português Afonso Cruz, no conto A Queda de um Anjo, escreve que “uma pessoa não tem só o seu passado, tem também o passado de todos os seus familiares, dos seus amigos, das histórias que leu e ouviu”. Talvez seja por isso que me surpreendo ao ver essas lembranças pulando da minha memória como pipocas na panela. Antes, não era assim.
Entre as lembranças que me ocorrem, algumas das mais doces são as dos finais de tarde, quando eu devia ter entre cinco e seis anos. Minha vó Rosa morava a dois quarteirões de nossa casa e, do nosso quintal, eu sentia o cheiro da carne de sol torrando na panela de barro e do baião de dois que só ela sabia fazer. Era um aroma que atravessava o tempo e o espaço, como se quisesse contar uma história em forma de cheiro. Os preparativos para o jantar na casa dos meus avós começavam por volta das cinco horas da tarde. Meu vô Joaquim, já doente da próstata, dormia cedo. Além disso, jantar e se recolher antes do anoitecer era um hábito antigo do casal.
Minha vó, que pariu 16 filhos, dos quais apenas minha mãe sobreviveu, era uma mulher cansada da lida roceira. Quando eu sentia aquele cheiro irresistível de baião com carne de sol, disparava pelo quintal em uma corrida ansiosa para ganhar um pouco daquela comida que parecia feita com pedaços de afeto. Essas memórias me invadiram enquanto eu lia o conto de Afonso Cruz, que fala de uma mulher octogenária que, após perder o marido, perde também a razão de viver e se joga de um edifício. Minha vó Rosa, de certa forma, também morreu de amor.
Depois da morte do vô Joaquim, ela casou-se novamente e foi viver com o novo marido em uma chácara em São Paulo. Por mais de dois anos, cultivou a esperança de recomeçar, mas acabou abandonada por ele, que decidiu não ficar mais. O desamor foi seu fim. A partir daquele momento, ela se recusou a viver, definhando, definhando até que o tempo a levou.
É curioso perceber como a leitura tem o poder de desenterrar memórias adormecidas e despertar sentimentos que julgávamos esquecidos. O conto de Afonso Cruz não só me encantou, mas me lembrou que as palavras têm o dom de nos conectar ao que há de mais humano em nós. Ler é como abrir janelas em um cômodo escuro: a luz que entra ilumina o que está escondido, revelando não só o que somos, mas tudo o que nos compõe.
Encantado com a escrita do meu novo amigo português, encerro esta crônica com outra frase sua, ainda de A Queda de um Anjo, que resume de forma magistral o que venho tentando dizer: “Quando esfregamos os olhos, esfregamos muitos séculos”. Guardamos em nosso ser, consciente ou inconscientemente, histórias vividas, sentidas e ouvidas. A vida é assim: um oceano de lembranças, saudades e sentimentos no qual navegamos diariamente, compondo, cada dia, mais um capítulo dessa aventura fantástica que é existir.