Sábado, 25 de Janeiro de 2025
22°C 32°C
Boa Vista, RR
Publicidade

Memórias e sabedoria do tempo

Com Dona Belinha, Seu Hercílio e Senhor João, aprendi a ouvir o passado — e a enxergar a vida com outros olhos.

Luiz Valério
Por: Luiz Valério Fonte: Luiz Valério
18/11/2024 às 08h24 Atualizada em 18/11/2024 às 08h34
Memórias e sabedoria do tempo
Entre causos e lições, as lembranças da infância com meus amigos idosos revelam o valor da experiência e da amizade

Tenho uma admiração e um carinho especial pelas pessoas idosas. Desde criança, sempre tive amigos da terceira idade e conversava mais com eles do que com meninos da minha idade. Hoje à tarde mesmo, nesta segunda-feira, 10 de novembro, dia em que escrevo esta crônica, uma sacola de tecido que recebi na Exposição Agropecuária de Roraima (Expoferr), no stand do Consulado da Guiana, me trouxe lembranças. A sacola continha revistas em inglês sobre o turismo no país vizinho e, de alguma forma, fez com que eu me lembrasse de Dona Belinha, uma personagem real dos meus tempos de menino.

Dona Belinha era uma senhorinha que saía todos os dias para pedir esmolas no centro de Juazeiro do Norte, minha cidade natal. Quando voltava, por volta das 11h da manhã, trazia sua cesta abarrotada de doações de todo tipo. Mal conseguia arrastar o peso. Parava, então, à porta de nossa casa e me pedia ajuda. Eu tomava sua cesta nas mãos e a acompanhava até sua casa, uma construção simples de pau a pique, onde morava junto a dez gatos — suas companhias, seus "filhos".

Grata pela ajuda, Dona Belinha sempre me oferecia pães, pedaços de rapadura ou bananas que ganhava na feira. Achava que eu, como criança, apreciaria essas guloseimas. Geralmente eu aceitava por educação, pois sabia que ela ficaria chateada se recusasse. Mas o que mais me atraía em sua companhia eram suas histórias fascinantes. 

Religiosa e beata, Dona Belinha contava causos do tempo em que Padre Cícero Romão Batista, fundador da cidade, ainda era vivo. Falava também de suas lembranças da juventude, narrando com vivacidade os detalhes do passado. Não me recordo bem de sua idade, mas ela devia ter àquele tempo entre 70 e 80 anos. Minha amiga idosa fazia todo esse esforço diário para sustentar a irmã cega e os dez gatos. Sem aposentadoria, dependia da ajuda dos outros.

Outro amigo idoso que eu tinha na infância era seu Hercílio, a quem hoje chamo de “o caçador de preás” — aquele roedorzinho típico do sertão, cuja carne é uma iguaria. Seu Hercílio, um bom baiano, era bonachão. Era também uma espécie de "homem dos sete instrumentos", talentoso em muitas coisas, embora preferisse evitar o trabalho pesado. O que realmente gostava era de tocar violão e compor repentes. 

Famoso entre os radialistas de Juazeiro, era sempre convidado para os programas de viola, comuns nas tardes das rádios sertanejas. Sempre que recebia um convite para se apresentar ao lado do popularíssimo Pedro Bandeira, dono do programa de viola mais ouvido da região, seu Hercílio vestia sua melhor roupa e, estiloso que era, dobrava a calça até o tornozelo, afinava a viola e colocava o pé na estrada, com seu andar faceiro. Voltava só sorrisos, feliz por seus momentos de fama no rádio.

Muitas vezes fui com seu Hercílio armar forjos — armadilhas para capturar preás. No caminho, ele me contava suas aventuras de caça, sempre enfeitando um pouco para tornar o enredo mais emocionante. Outras vezes, apelava para histórias de assombração. Eu escutava, olhos arregalados, fascinado pelas invenções da mente do velho e bom Hercílio. Ele também era meu companheiro de pescarias, e nesses momentos continuava a me encantar com seus causos. Acredito firmemente que minha escolha pela carreira de jornalista, um contador de histórias reais, tem a ver com a influência dos meus amigos mais velhos. Antes de ser um bom contador de histórias, aprendi com eles a ser um bom ouvinte.

Ainda havia outro amigo idoso, mais sisudo, mas igualmente querido: o senhor João Carroceiro. Com ele, passeava em sua carroça puxada por animais. Quando não estava na escola, me aventurava com seu João em sua lida diária. Ele transportava tijolos e areia para construção, e eu era seu ajudante mirim. Em troca, ganhava uns trocados que gastava em balas ou alguma guloseima. O trabalho era pesado, mas divertido, e as histórias contadas por seu João povoavam minha imaginação e moldaram meu futuro de escritor. Como disse Cícero, “A velhice é venerável quando é acompanhada pela sabedoria” — e só depois de adulto percebi o valor profundo dessas experiências com meus amigos idosos.

Esses senhores e senhoras, com sua bagagem de vida, me ensinaram lições que livro algum poderia ensinar. Para eles, o passado não era algo a ser esquecido, mas um tesouro a ser compartilhado. As histórias de vida dos mais velhos são um mapa do tempo, e é preciso valorizá-las e ouvir, pois, como diz um velho provérbio africano, “Quando um idoso morre, uma biblioteca inteira se incendeia”.

* O conteúdo de cada comentário é de responsabilidade de quem realizá-lo. Nos reservamos ao direito de reprovar ou eliminar comentários em desacordo com o propósito do site ou que contenham palavras ofensivas.
Viva Bem!
Viva Bem!
Dicas e orientações para uma vida saudável.
Ver notícias
Boa Vista, RR
26°
Tempo nublado
Mín. 23° Máx. 35°
27° Sensação
3.09 km/h Vento
74% Umidade
100% (4.08mm) Chance chuva
07h15 Nascer do sol
07h15 Pôr do sol
Domingo
31° 23°
Segunda
30° 23°
Terça
31° 22°
Quarta
32° 24°
Quinta
° °
Publicidade
Publicidade
Publicidade
Anúncio
Economia
Dólar
R$ 5,91 -0,02%
Euro
R$ 6,19 -0,28%
Peso Argentino
R$ 0,01 +0,00%
Bitcoin
R$ 656,021,67 -0,61%
Ibovespa
122,446,94 pts -0.03%
Publicidade
Anúncio
Publicidade
Anúncio
Enquete
Nenhuma enquete cadastrada
Publicidade